WEBLAST 2010

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"It's not me; it's the songs. I'm just the postman, I deliver the songs." (Bob Dylan)

É maravilhoso quando descobrimos um som, que não se sabendo bem porque misteriosas ligações se conecta connosco, nos emociona, nos tranquiliza, nos faz rir ou dançar, que passa a fazer parte da nossa memória e da banda sonora do nosso quotidiano...melhor ainda quando nos é dado de presente como se fizéssemos anos e os amigos nos celebrassem a existência...Por vezes sentimo-nos na vanguarda de um som nunca antes escutado outras a viver no fim do mundo onde as músicas e os seus autores parece que demoram 20 anos a alcançarem os nossos ouvidos mas ambos, quase sempre, os recebemos em jeito de partilha, num "toma lá dá cá" de experiências, referências, de conhecimentos e amizade.Que este BLOG seja a nossa caixinha de música, de sons e imagens que descobrimos num entusiástico "UAU" ou que recordamos e que queremos partilhar...a composição conjunta de uma partitura de câmbios musicais...sem comentários...apenas a música e as suas imagens...Um projecto simples e colectivo que seria bom que conseguisse transformar alguns dos nossos dias, em dias muito mais ricos e felizes...Para já um grande bem haja aos seus autores…QUE SOMOS TODOS NÓS

Tuesday, May 30, 2023

 

Para Sam S.

(à americana)


Naquela altura, tal como agora, adormecia muitas vezes entusiasmada com a perspectiva daquilo com que ia sonhar. Era, aliás, o derradeiro rasgo de vitalidade nos meus dias. Como se já só aquilo pudesse gerar-me algum interesse por mim, não epserava nada mais da minha pessoa. Safar-me e resgatar-me para a vida, in extremis. Como o helicóptero por cima do lago, a içar o afogado moribundo com os pulmões cheios de água, braços pendentes do peito arqueado a apontar ao céu, com um pé já na morte. Assim estava eu.

Naquela altura, tal como agora, os dias que me calharam tinham-me cativa numa constelação vagarosa de nadas, ainda-não-foi-hojes e se-eu-ao-menos, lamúrias e faltas cuja esmagadora força centrípeta me sugava para um torpor pastoso. Nunca, nada, ninguém, lado nenhum. O tempo assim como os dias que o compunham: sem princípio nem fim. E uma solidão.

A expectativa de viver algo excitante nos sonhos era o que podia, com jeito, salvar o dia. Deitava-me, tal como agora, tão cedo como socialmente aceitável (enquanto ainda não se vive num lar de idosos). Mas no limite. Muito, muito cedo, logo que o sol me abençoava com uma justificação.

De uma forma ínvia, alimentava-me dos meus próprios sonhos. Bom, ainda tinha alguma capacidade de me entreter a mim própria! Pas mal!

Naquela altura, tal como agora, de dia deitava-me na vida e tapava a cabeça com a manta do relógio. Mas nos sonhos ... oh sim! Que poder! Ali, embebedava-me com a seiva da vida e tinha acesso a todas as paisagens e cores da emoção humana. Fazia tantas coisas, descobria sítios, transformava todos os lugares por onde passava, nada ficava inalterado. Os outros esperavam-me e seguiam-me. Tal como agora, nos sonhos eu era um vendaval fulgurante e magnético e enlaçava a vida num brutal, puro e vasto amplexo erótico.

Naquela altura, tal como agora, o que ali vivia era suficientemente vibrante para me bastar passar o dia pasmada à espera hora de adormecer e começar viver. O alívio de deixar o beco para trás, com a minha tralha mal-parida, demasiado real no seu desconchavo inútil e regressivo. Mal a noite deixava cair os primeiros fios do manto, ia deitar-me, com toda a pressa, para aproveitar bem todo o tempo da noite. Uma concessão fugaz para deixar de ter fingir que produzia ou algum dia produziria o que quer que fosse.

Os meus sonhos, aquelas criações maravilhosas que se bastam a si próprias, trazem-me à memória Sam, que conheci num pub em Fort Sheridan, Illinois. A sua cara olhava-me, deitada no balcão, por trás de um copo de moonshine intacto e enevoado por grandes blocos de cinza. Estes cediam lentamente à gravidade e despenhavam-se dos cotos dos pall mall que pareciam ser um sexto dedo, irmão diferente, da mão direita. “Miúda, vi-me obrigado a escrever porque não havia um cabrão dum livro naquela casa. Tinha de criar as histórias para as poder ler a seguir. Era isso ou a morte à sede no deserto. Assim passei quinze anos. Nas minhas histórias, aí, morria toda a gente. Mas isso safou-me. Alguém tinha de estar vivo para aquela cambada toda poder quinar em paz. Tive de me manter vivo e em movimento, a escrever para comer. Literalmente. História após história, peça após peça. Era isso ou morria eu, sem palavras, enterrado em solidão”. Estava fascinada com a sua presença e a sua voz, muito mais clara do que expectável, vinda como que de outro lugar bem mais vital e jovem do que aquela boca bêbada  sobre o balcão. A sua mão pendia sobre o copo e os dedos faziam súbitos e vagos movimentos circulares no ar, esbarrando sempre no rebordo do copo com as unhas e espalhando mais cinza sobre o balcão e o saco de batatas fritas vazio e gordurento. Nesses poucos gestos, eu via personagens, enredos a viajar por uma América que nunca seria minha. “Escuta bem: a única coisa que pode distinguir um dia de outro é o que fazes dele. O que tu fazes, a tua ação. Porque o que tu pensas, isso é sempre a mesma merda. Pior: é a mesma merda que eu penso. E que nunca me levou a lado nenhum. E, se fores perguntar à Janet, que vai morrer atrás deste balcão a servir copos, quais os seus pensamentos, não vais encontrar grande diferença. Ou fazes coisas que transformem o mundo à tua volta ou, ouve bem, vais viver sempre no mesmo dia, por mais que acordes e te levantes com a tua cabeça no propósito de o tornar diferente. Vai ser sempre o mesmo dia, infinito, asfixiante e baço. Os teus pensamentos, esses, miúda, podem ser lindos e inteligentes mas, cá fora, no mundo, ninguém os vê”