Para Sam S.
(à americana)
Naquela altura, tal como agora, adormecia muitas vezes entusiasmada com a perspectiva daquilo com que ia sonhar. Era, aliás, o derradeiro rasgo de vitalidade nos meus dias. Como se já só aquilo pudesse gerar-me algum interesse por mim, não epserava nada mais da minha pessoa. Safar-me e resgatar-me para a vida, in extremis. Como o helicóptero por cima do lago, a içar o afogado moribundo com os pulmões cheios de água, braços pendentes do peito arqueado a apontar ao céu, com um pé já na morte. Assim estava eu.
Naquela altura, tal como agora, os dias que me calharam tinham-me cativa numa constelação vagarosa de nadas, ainda-não-foi-hojes e se-eu-ao-menos, lamúrias e faltas cuja esmagadora força centrípeta me sugava para um torpor pastoso. Nunca, nada, ninguém, lado nenhum. O tempo assim como os dias que o compunham: sem princípio nem fim. E uma solidão.
A expectativa de viver algo excitante nos sonhos era o que podia, com jeito, salvar o dia. Deitava-me, tal como agora, tão cedo como socialmente aceitável (enquanto ainda não se vive num lar de idosos). Mas no limite. Muito, muito cedo, logo que o sol me abençoava com uma justificação.
De uma forma ínvia, alimentava-me dos meus próprios sonhos. Bom, ainda tinha alguma capacidade de me entreter a mim própria! Pas mal!
Naquela altura, tal como agora, de dia deitava-me na vida e tapava a cabeça com a manta do relógio. Mas nos sonhos ... oh sim! Que poder! Ali, embebedava-me com a seiva da vida e tinha acesso a todas as paisagens e cores da emoção humana. Fazia tantas coisas, descobria sítios, transformava todos os lugares por onde passava, nada ficava inalterado. Os outros esperavam-me e seguiam-me. Tal como agora, nos sonhos eu era um vendaval fulgurante e magnético e enlaçava a vida num brutal, puro e vasto amplexo erótico.
Naquela altura, tal como agora, o que ali vivia era suficientemente vibrante para me bastar passar o dia pasmada à espera hora de adormecer e começar viver. O alívio de deixar o beco para trás, com a minha tralha mal-parida, demasiado real no seu desconchavo inútil e regressivo. Mal a noite deixava cair os primeiros fios do manto, ia deitar-me, com toda a pressa, para aproveitar bem todo o tempo da noite. Uma concessão fugaz para deixar de ter fingir que produzia ou algum dia produziria o que quer que fosse.
Os meus sonhos, aquelas criações maravilhosas que se bastam a si próprias, trazem-me à memória Sam, que conheci num pub em Fort Sheridan, Illinois. A sua cara olhava-me, deitada no balcão, por trás de um copo de moonshine intacto e enevoado por grandes blocos de cinza. Estes cediam lentamente à gravidade e despenhavam-se dos cotos dos pall mall que pareciam ser um sexto dedo, irmão diferente, da mão direita. “Miúda, vi-me obrigado a escrever porque não havia um cabrão dum livro naquela casa. Tinha de criar as histórias para as poder ler a seguir. Era isso ou a morte à sede no deserto. Assim passei quinze anos. Nas minhas histórias, aí, morria toda a gente. Mas isso safou-me. Alguém tinha de estar vivo para aquela cambada toda poder quinar em paz. Tive de me manter vivo e em movimento, a escrever para comer. Literalmente. História após história, peça após peça. Era isso ou morria eu, sem palavras, enterrado em solidão”. Estava fascinada com a sua presença e a sua voz, muito mais clara do que expectável, vinda como que de outro lugar bem mais vital e jovem do que aquela boca bêbada sobre o balcão. A sua mão pendia sobre o copo e os dedos faziam súbitos e vagos movimentos circulares no ar, esbarrando sempre no rebordo do copo com as unhas e espalhando mais cinza sobre o balcão e o saco de batatas fritas vazio e gordurento. Nesses poucos gestos, eu via personagens, enredos a viajar por uma América que nunca seria minha. “Escuta bem: a única coisa que pode distinguir um dia de outro é o que fazes dele. O que tu fazes, a tua ação. Porque o que tu pensas, isso é sempre a mesma merda. Pior: é a mesma merda que eu penso. E que nunca me levou a lado nenhum. E, se fores perguntar à Janet, que vai morrer atrás deste balcão a servir copos, quais os seus pensamentos, não vais encontrar grande diferença. Ou fazes coisas que transformem o mundo à tua volta ou, ouve bem, vais viver sempre no mesmo dia, por mais que acordes e te levantes com a tua cabeça no propósito de o tornar diferente. Vai ser sempre o mesmo dia, infinito, asfixiante e baço. Os teus pensamentos, esses, miúda, podem ser lindos e inteligentes mas, cá fora, no mundo, ninguém os vê”